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DICA DE LIVRO – AMIN MAALOUF: O Rochedo de Tânios

“Na aldeia onde nasci, os rochedos têm nome. Há o Navio, o Cabeça-de-Urso, o Emboscada, o Muro, e ainda os Gêmeos, também chamados de os Seios da Bruxa. Há sobretudo a pedra dos Soldados; era lá que antigamente se ficava à espreita quando a tropa perseguia o rebeldes; nenhum lugar é mais venerado, mais carregado de lendas”…

É no mínimo curiosa a vida, especialmente certas coisas que acontecem conosco… Desde que me aproximei da comunidade libanesa, em maio do ano passado, o Líbano continua a chegar até a mim… Afinal, são amigos, negócios, imagens, política, culinária, dança, folclore… e agora, literatura!

Um amigo me indicou a leitura de um romancista libanês chamado Amin Maalouf. Ele me disse, “você não sabe o que está perdendo”. Como um aluno dedicado, resolvi pagar a aposta e ver para crer. O resultado, com certeza, não poderia deixar de ser melhor! Trata-se, sem sombra de dúvida, de um grande escritor…

“Passagem é então a uma só vez um sinal manifesto do destino – uma incursão que pode ser cruel, irônica, ou providencial – e um marco, uma etapa de uma existência fora do comum. Nesse sentido, a tentação de Lâmia foi, no destino de Tânios, a passagem inicial; aquela daqual emanariam todas as outras”…

Nascido em Beirute em 25 de feveireiro de 1949, ele é um dos maiores expoentes da literatura libanesa contemporânea. Nascido cristão árabe – o segundo de uma prole de quatro filhos-, o seu pai Rudchi Maalouf – um católico melquita – era escritor, jornalista e professor. Sua mãe, Odette, era oriunda de uma família maronita, o que levou-o inclusive a ter estudado em uma escola jesuita. Formou-se em Economia e Sociologia pela Universidade Francesa, em Beirute, seguindo a tradição familiar de jornalista e romancista.

Aos 22 anos, começou a trabalhar no periódico libanês An-Nahar, levando-o a cobrir conflitos em cerca de 60 países no mundo, tais como Índia, Bangladesh, Etiópia, Somália, Quênia e Argélia. Como o início da guerra civil libanesa, em 1975, radicou-se com a família em Paris, tomando a resolução de dedicar-se mais amiúde à literatura – inclusive, os seus romances são todos escritos em francês, apesar do árabe ser a sua língua de origem.

“Em cada época, comenta o monge Elias, houve entre as gentes de Kfaryabda um louco, e quando desaparecia, um outro estava pronto a tomar seu lugar como uma brasa sob a cinza, para que esse fogo não se acabe jamais. Sem dúvida, a Providência tem necessidade desses fantoches que agita com os dedos para rasgar os véus que a sabedoria dos homens teceu”…

Sua obra consiste em romances, obras de não ficção e librettos para ópera. De todos os seus romances, o mais aclamado pela crítica é O Rochedo do Tânios, escrito em 1993 – e editado no Brasil pela Companhia das Letras -, ganhador do Prix Goncourt no mesmo ano. E todo o falatório em cima do livro é justificado, pois trata-se de uma pérola, tamanha a delicadeza de sua escrita…

O livro se passa na vila libanesa de Kfaryaba, um povoado remoto encravado nas montanhas libanesas, no século XIX. Trata-se da saga do “jovem-ancião” Tânios – uma das inúmeras variantes locais, segundo o autor, de Antônio, Antoun, Antonios, Mtanios, Tanos ou Tannous -, filho bastardo da bela Lâmia com o sheik Francis, um cristão árabe.

“Para todos os outros, és o ausente, mas eu sou o amigo que sabe. À revelia deles, correste no caminho do pai assassino, em direção da costa. Ela te espera, a moça do tesouro, em sua ilha; e seus cabelos têm sempre a cor do sol do Ocidente”…

Como nos romances de Umberto Eco, Orhan Panuk e Arturo Pérez-Reverte, os seus livros têm um pano de fundo histórico, agregando fatos históricos reais com reflexões filosóficas e pitadas generosas de fantasia. No caso específico desse livro, as venturas e desventuras das personagens são narradas durante a dominação otomana do Líbano, abordando também a interferência das potências estrangeiras européias – França e Inglaterra – no território que abrangia toda a costa oriental do Mediterrâneo.

Para quem busca grandes divagações, frases epistolares eivadas de pedantismo ou escavações existenciais, certamente irá se decepcionar com o romance. A sua escrita não é grandiloquente – como a de um Jorge Luís Borges -, nem repleta de divagações metafísicas – como a de um Cornélio Penna -, mas é de uma sensibilidade e de uma delicadeza memoráveis, além de uma sutileza deliciosa, o que torna o texto acessível ao leitor. A economia dos adjetivos não torna o texto menos alegórico, o que atesta uma clássica afirmação de que as coisas mais complexas são justamente aquelas que exalam simplicidade – afinal, quem disse que para ser complexo, um texto deve ser necessariamente hermético, repleto de bizantinismos e obtuso?

“A palavra do sábio ecoa na claridade. Mas desde sempre os homens preferiram beber a água que brota das grutas mais escuras”.
(
Nader, A sabedoria do muladeiro)

Seu estilo é urdido com uma pretensa singeleza, porém muito delicado, tal como um cristal raro, que deve ser apreciado contra a luz ambiente a fim de revelar todas as suas nuances e matizes. É um texto de “guarda”, não um romance fast-food, daqueles que entulham as prateleiras das livrarias e almejam desesperadamente frequentar a lista dos “mais vendidos”. Nem é um romance exótico, que explora as idiossincrasias do “modo de vida” oriental para tornar-se vendável. Suas personagens são humanas, demasiadamente humanas, divididas entre as exigências da coletividade e os imperativos de seus desejos pessoais. De uma certa forma, Tânios é um arquétipo da existência humana, um típico herói, cuja existência é dramática por agir conforme a sua própria vontade, de acordo com o imperativo categórico kantiano. Aliás, a sua tragédia – como o caráter trágico de qualquer herói – repousa em “bem-dizer” o seu desejo, segundo uma afirmativa do psicanalista francês Jacques Lacan.

Conforme iam se passando as páginas do livro, me recordei prontamente da frase proferida por um mestre da literatura brasileira, Ariano Suassuna, ao afirmar que, independentemente do quão regional possa ser uma determinada trama – e ele toma como exemplo a obra máxima de Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha -, ela deve ser construída tendo como cerne uma história universal, ou seja, que expresse os dilemas e os dramas atemporais da existência humana.

“Nesse ponto de minhas buscas hesitantes, esqueci um pouco a perturbação de Tânios, diante da minha própria perturbação. Não procurara, para além da lenda, a verdade? Quando acreditara alcançar o coração da verdade, ele era feito de lenda”…

No caso d’ O Rochedo de Tânios, não importa se a trama se passa nas montanhas libanesas, e se a atmosfera é repleta de referenciais simbólicos orientais – narguillés, vilarejos encravados na montanha, patriarcas e sacerdotes de ritos orientais, os “rapapés” das cortes otomanas, locais exóticos para nós como o Cairo, Chipre, Tripoli -, a empatia do leitor com o seu texto se estabelece de imediato, dada a universalidade da trama, o drama existencial de Tânios e as vicissitudes de seu vilarejo.

Mas, o mais interessante para mim, é o intertexto que eu estabeleci com o seu romance…

Para mim, a aldeia montanhesa de Kfaryabda é uma bela alegoria sobre o Líbano natal de Maalouf, uma terra de passagem, de lutas e de rápidas transformações. Uma terra que recebe os seus “visitantes-invasores” de maneira acolhedora – com água de rosas e arroz jogados da sacada das casas, como manda a tradição -, mas que devora qualquer um que tente dominá-la e subjugá-la. A saga de Tânios é a crônica das montanhas libanesas, da resistência e da altivez de seu povo, uma resistência surda contra todos aqueles que a manipulam e a subjugam – sejam estes romanos, persas, árabes, turcos otomanos, franceses, ingleses, americanos…

O Líbano, como os seus próprios habitantes dizem, é uma terra de contrastes, um mosaico de tradições e costumes ancestrais, um carrefour para onde convergem diferentes povos, distantes historicamente, mas que se mesclam no caldeirão de influências que é o País dos Cedros. É uma terra turbulenta, de fortes reviravoltas, cuja tenacidade do povo se mantém, tal como no Rochedo de Tânios, ao espreitar os invasores e lhes dar adeus, à espera de novos aventureiros que pretendam desbravá-la e dominá-la – sempre em vão…

O Líbano é um vir-a-ser, um projeto de nação, um estado em permanente construção e reconstrução. Em um país onde tudo é precário, frágil e instável, uma permanência é sempre necessária – e salutar! Basta abrir o livro de Maalouf que ela, ou melhor, ele (Tânios) está lá, do alto de seu rochedo, nos observando e nos perscrutando, desaparecido mas onipresente, como a nos lembrar que esta terra, disposta em um exíguo espaço entre o mar e a montanha – tão longe, mas tão próxima -, está lá a nos seduzir, tal como um corpo de mulher, ancestralmente disposta em sua singela disponibilidade, mas tenazmente inacessível, volúvel, cambiante.

“Sobre os passos invisíveis de Tânios, quantos homens partiram da aldeia depois! Pelas mesmas razões? Antes pela mesma investigação, e sob o mesmo ímpeto. Minha Montanha é assim. Apego ao solo e aspiração à partida. Lugar de refúgio, lugar de passagem. Terra do leite e do mel e do sangue. Nem paraíso nem inferno. Purgatório”…

As civilizações passaram e desapareceram, mas Tânios continua a nos olhar zombeteiramente, do alto de seu rochedo, tal como um certo D. Sebastião, o Brumoso, uma “ausência presente”, esperando o final dos tempos para nos redimir dos nossos pecados humanos, demasiadamente humanos…

Há muita filosofia em um rochedo, posto que sua permanência nos remete ao fato de que tudo na vida é efêmero, é passageiro, é puro movimento. Exceto a vida em si mesma, que nos lança o tempo todo enigmas, que nos fazem desconfiar do seu caráter eminentemente mineral…

“Atrás de meu ombro, a montanha próxima. Aos meus pés, o vale de onde subiriam ao cair do dia os uivos familiares dos chacais. E lá, ao longe, eu via o mar, minha estreita parcela de mar, estreita e longa rumo ao horizonte como uma estrada”.
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