>
A alma brasileira, dentre várias nuances, possui um caráter paradoxal, posto sermos um país – e, por extensão, uma sociedade – que vive na eterna expectativa de um futuro grandioso a vir, onde os males da pobreza, da desiguldade e da exclusão social serão finalmente erradicadas. Dessa maneira, vivemos em uma espécie de futuro do pretérito, encarcerados no intervalo entre um passado colonial, um presente patrimonialista e um futuro “róseo”. Daí, a nossa alma oscilar em um movimento pendular entre a revolta com o descaso dos dirigentes e políticos, e a euforia e o ufanismo do esporte, da música e de outras manifestações culturais que porventura levantam a nossa auto-estima…
Os brasileiros costumam fazer uma piada aproveitando o dito popular de que, pelo fato de Deus ser brasileiro, ele colocou aqui tudo de bom e de ruim. Ao mesmo tempo que somos um país de repleto de riquezas e belezas naturais, sem terremotos, furacões, vulcões e tsunamis (há controvérsias!), temos habitantes que se comportam de maneira predatória e descompromissada com o bem-estar do país. Daí o paradoxo: país bom, governantes incompetentes. Por isso, achamos que tudo de ruim que ocorre no mundo inteiro é elevado a enésima potência no Brasil…
Meus queridos compatriotas, menos: devagar com o andor, que o santo é de barro! Ou então, nem tanto ao mar, nem tanto à terra!
Em agosto de 2007, uma carta que chegou à redação do periódico espanhol El País chamou a atenção de cientistas sociais e estudiosos do consumo. Assinada por uma jovem publicitária catalã, a carta era um libelo acerca da emergência de um novo segmento de consumidores: os mileuristas. Logo, o que parecia ser um simples e bem-humorado desabafo de uma jovem frustrada em seus sonhos de ascensão social, acabou se tornou fonte de um debate que se espalha pela cena intelectual européia (http://www.elpais.com/articulo/portada/generacion/mil/euros/elpepusocdmg/20051023elpdmgpor_1/Tes)
Mileuristas – ou ” aqueles que ganham mil euros mensais” – compõem uma nova geração de jovens europeus, bastante escolarizados (com cursos de graduação, extensão, aperfeiçoamento, especialização e pós-graduação), que falam dois ou mais idiomas, super-informados, mas cujos rendimentos se situam muito abaixo do investimento educacional que fizeram ao longo da vida. São pessoas que, sozinhas, não teriam dinheiro suficiente para pagar o aluguel de um apartamento situado nas grandes cidades – estes gostam de residir nestas áreas. Daí, a opção de viver em “repúblicas”, dividindo as despesas domésticas com mais três ou quatro colegas. Além disso, não têm filhos, não possuem carro e não têm condições de comprar sua casa própria. Sem sombra de dúvida, é uma nova forma de pobreza e precariedade social – com um pouco mais de charme, é claro, mas que não deixa de ser dramática…
O mais grave é que, longe de ser um fenômeno exclusivamente espanhol, os mileuristas estão se espalhando a passos largos por toda a Europa. Só na Espanha, segundo dados da União Européia, apenas 40% dos estudantes universitários têm um emprego à altura de suas qualificações. Segundo o cientista social Louis Chauvel, em um artigo publicado no Nouvel Observateur, a pobreza atual é a de jovens super-qualificados, e não mais a dos agricultores e artesãos pouco escolarizados – característica do final do século XIX e início do século XX.
Os mileuristas questionam um truísmo clássico das sociedades ocidentais: o de que o investimento educacional leva, necessariamente, a uma melhoria do nível salarial e de emprego. Ao contrário disso, são jovens que vivem com o seu dinheiro contado, cada vez mais frustrados em seus sonhos dada a excessiva oferta de bens de consumo como eletroeletrônicos, computadores, telefones celulares, PDAs e outros gadgets. São ávidos pela internet, mas acessam a rede do trabalho ou nos cybers cafés, por não possuírem conexão de banda larga em casa. Adoram jantar fora, mas só frequentam restaurantes onde o preço caiba em seus orçamentos. São antenados com as últimas tendências da moda, mas compram apenas em liquidações ou em lojas de departamentos (como, por exemplo, em cadeias como Zara, Massimo Duti e Mango), dadas as suas restrições orçamentárias óbvias. Ou seja, possuem uma infinidade de desejos de consumo, mas o poder de compra frustra-os imediatamente. Neles, a máxima querer não é poder está na ordem do dia de suas vidas…
Conforme o tempo passa, a sensação desses jovens é um mix de frustração, desânimo e angústia – afinal, têm a clara percepção de que correm para chegar a lugar algum. Muitos se sentem “ultrapassados” ou “velhos” demais para o mercado de trabalho, e se recriminam por ter começado a sua vida profissional tarde demais. Qualificações acadêmicas e intelectuais não faltam – dado o volume de diplomas universitários acumulados por eles -, mas acabam se engajando em “bicos” ou sub-empregos, tais como operadores de call-centers, auxiliares administrativos, guias turísticos e de museus, e atendentes de lojas em shopping centers…
As explicações para esse fenômeno são inúmeras, mas todas giram em torno da explosão das matrículas dos jovens em cursos universitários. O acesso maior da população ao ensino superior levou a uma commoditização dos diplomas, elevando as exigências e os níveis de qualificação para o ingresso nos postos mais disputados do mercado de trabalho. Não raro, nos dias de hoje exige-se dos jovens diplomas de graduação e de pós em universidades de ponta, três ou mais idiomas, domínio de informática complexa, e outras qualificações mais. Muitos, por causa disto, investem seu tempo e dinheiro no desenvolvimento destas competências, acabando por retardar o seu ingresso no mercado de trabalho. Daí, quando se sentem aptos, descobrem a dura realidade: as vagas já estão preenchidas, e novas qualificações estão sendo exigidas…
Paralisados no intervalo da semi-independência – independência dos pais, dependência dos amigos -, trabalhando de maneira precária, e sem condições de formar uma sólida poupança, esses jovens adensam um segmento social cada vez maior de “novos pobres e precários”. São jovens que acreditaram no caminho preconizado pelos seus pais, pelo mercado e pelo Estado, mas que fracassaram – até então – em seu percurso rumo à sustentabilidade. São o fruto de uma “Modernidade Líquida” – segundo conceituação do sociólogo Zygmunt Bauman -, que aprenderam a duras penas a não fazer planos, e a viver cada dia das suas vidas como se fosse o último…
Sem rumo, nem eira nem beira, vivem na expecativa de romper algum dia esse ciclo vicioso de precariedade. Enquanto isso trabalham arduamente, seguindo à risca o lema carpe diem (aproveite o dia), e continuam enviando currículos, mandando e-mails, adensando o seu network e correndo de uma entrevista de emprego para outra. No entanto, perderam a idéia de linearidade e de progresso. Ao invés da vida ser uma escada em direção ao conforto do futuro, sentem-se dando voltas a redor do mesmo ponto, tal como ratos de laboratório, tentando encontrar uma saída do labirinto no qual encontram-se presos…
Apesar de formados, sentem-se como eternos estudantes. E, mais do que isso, estão cansados, muito cansados…
Será que isso também está acontecendo no Brasil? Como será que estão os nossos jovens urbanos, bem informados, altamente escolarizados, que vivem nos grandes centros urbanos?